Lágrimas de crocodilo (Inácio Carreira)

   Saiu de casa. Pela última vez, dizia. Nem que chore lágrimas de sangue (bonita figura, apreendida na infância e que algum escaninho mental, aberto agora com toda essa emoção, deixava vir à luz da consciência). Não via vantagem alguma em estar atrelado a uma instituição que dava, a ele, somente casa, comida e roupa lavada. Cobrando, pensando não exigir nada em troca, o que de mais importante ele prezava nessa vida: a liberdade.

   Liberdade de ir e vir, de ficar na rua até altas horas com os amigos, de não lavar a louça do café da manhã atrasado, de deixar seus pertences por toda a casa (afinal, diziam sempre que a casa é dele, que ele faz parte da família, que todos o amam!)…
   A partir desse amor apontavam seu futuro: teria que ser médico, detetive, advogado, escritor ou qualquer outra coisa que a mãe vivia escarafunchando naqueles sites de horóscopo e consultando tudo que era vidente que aparecia na cidade. Controle remoto. Sim, era assim que ele sentia-se: manipulado por controle remoto.
   Que amor é esse que cobra pedágio, ágio, explicações? Deixassem que vivesse sua vida em paz e ele ficaria ali, sendo o exemplo (mau?) para os pequenos, para os vizinhos, para os filhos das ex professoras. “Veem o Zé? Deu pra nada, não… Virou chupim”… Chupim o catso… Ele tem dois ovos, mas não os colocou no ninho de ninguém para serem chocados… Aproveitador?… Passa… Ele não pediu pra nascer, pediu? Teria, agora, que entrar nessa de provedor do capitalismo selvagem e virar escravo de empresas internacionais, de rede de computadores, de nomes absurdos de empresas telefônicas que disputam os ouvidos dos incautos com as mais absurdas ofertas, fazendo o infeliz (que se acha feliz) esquecer que pode estar adquirindo um tumor pela proximidade das ondas eletromagnéticas com seu cérebro?
   Sempre procurei ser social, cortês, observador, colocar meu senso crítico a serviço do próximo, tentava justificar-se. Do que valeu? Nada, nada, nada, repetindo o refrão do “Você não soube me amar”… Valorizava a amizade, colocando no freezer os traíras. Sem piedade.
   “Sexo, drogas e rock n’roll”, sua máxima, somente dele, ninguém mais entende. No começo sexo era tudo para ele, espírito e matéria. Além dos Beatles e dos Rolling Stones amava de corpo e alma suas parceiras em relacionamentos profundos, mágicos, trágicos. Trágicos? Sim. O rock foi substituído pelo funk, o sexo foi substituído pelas drogas, o funk foi substituído pelas drogas. “Zé, sai dessa vida, vai estudar, trabalhar, ser gente!”, diziam, como se ele não fosse gente. Gente e respeitado no pedaço de beco em que cada pedrinha é disputada às vezes na mão grande, às vezes no tapa, mesmo…
   Aquela camisa laranja vai ser seu amuleto: no sábado escapou de uma batida policial, deu sorte, os homens entraram quebrando tudo, ele soube pela zinha…

Inácio Carreira. CONTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO LIVRO TRAMAS, MOLESKINE EDITORA, NOVEMBRO DE 2012.

Esse post foi publicado em Prosa e marcado , , , , , . Guardar link permanente.

3 respostas para Lágrimas de crocodilo (Inácio Carreira)

  1. Ruth disse:

    É……. coisas do cotidiano…..tramas da vida!
    Valeu Inácio!

  2. Tiago disse:

    Lecionando nesses últimos anos tive o desprazer de conhecer algumas histórias parecidas: no começo apenas uma rebeldia adolescente, mas que muitas vezes aumenta, degenera e o fim é triste…
    Valeu a reflexão Inácio.

  3. Parei para pensar no muitas vezes pensado e temido: As drogas roubam os jovens de nós, ou nós não deixamos escolha para se livrarem da pressão do viver moderno?
    Ouvi e vi, dezenas de casos tão ou mais contundentes, onde um pai, ou uma mãe tinham papel preponderante.
    Não os estou culpando, só chamando a atenção, como fazes neste trágico e belo conto. Pensar sobre isso pode salvar muita gente.

O que tens a dizer sobre o post?