CONHECEREIS A VERDADE E A VERDADE VOS LIBERTARÁ (Marilice Ferraz)

Com a ajuda de Luzia, Beatriz colocava o vestido de tafetá azul turquesa diante do espelho. Percebeu nos olhos da eterna babá a emoção por ver sua menina, agora crescida, preparando-se para o tão esperado baile de debutante. Em meio a presentes, cartões e flores, o clima era de euforia dentro do quarto da luxuosa cobertura de frente para o mar.Mas em seu íntimo, Beatriz não se sentia completamente feliz, era como se hoje faltasse mesmo o que lhe fora arrancado há 10 anos, quando ainda era apenas uma garotinha. As unhas pintadas na sandália prateada faziam Beatriz se sentir mesmo uma mulher, embora o sutiã a estivesse incomodando, não estava acostumada com “aquela prisão”.

Beatriz tinha somente cinco anos quando a mãe foi encontrada morta na cama do casal. Suicidara-se, cortando os próprios pulsos. A criança fora retirada rapidamente do quarto, poupada em todos os momentos que se seguiram, por isso pouco se lembrava da ocasião; e no momento do enterro ficara com Luzia que lhe fizera um balde de pipocas. Mas lembrava-se perfeitamente de ter constatado, em sua ingenuidade infantil, “como papai comprou outra mamãe tão rápido”.

Os brincos, o colar e a pulseira que o pai lhe dera para o baile de 15 anos  ficaram perfeitos, “era uma verdadeira princesa”, nas palavras de Luzia.

Beatriz pensava agora em Helena. Fora uma boa madrasta nesses anos todos, não podia negar, cuidara de sua educação, de sua saúde, de seus cabelos, seu bem estar, e acima de tudo, cuidara do pai, depois da crise de nervos e em sua rotina de calmantes e antidepressivos. Mas um mistério sempre pairou no ar. Beatriz, desde a infância, notava uma névoa de culpa nas atitudes de Helena, traduzida num excesso de zelo, talvez.

– Não exagere no blush, Luzia, sabe que isso me dá coceiras. – pediu com impaciência para a babá.

Com o tempo, Beatriz começou a se interessar pela vida da mãe, em conhecer aquela que, hoje em sua memória, era apenas uma sombra. E, dias antes da grande festa, ao mexer nas coisas da mãe, ainda guardadas num baú entre os pertences e documentos do pai, encontrou o inseparável diário da mãe e ali conheceu os seus últimos seis meses de vida e a infelicidade profunda que experimentara.

O contorno dos lábios feito com esmero por Luzia agora lembrava Marilyn Monroe.  – Que tal fazer uma pintinha no canto da boca? – sugeriu Beatriz à incansável Luzia.

Descobrira que o que deu à sua mãe uma silhueta 8 quilos mais magra em um único mês não fora a vaidade extrema atribuída pela avó paterna de Beatriz, mas a anorexia nervosa, a depressão profunda, que em nenhum momento cedeu, mesmo depois do tratamento psiquiátrico. Em poucas semanas veio a reclusão em seu quarto escuro, de onde já não saía nem para as refeições em família. Beatriz lembrava-se perfeitamente de mastigar e engolir a comida com o pai,somente, naquela mesa imensa da sala de jantar.

– Fonte de mel nos olhos de gueixa… – Beatriz cantarolava baixinho enquanto Luzia dava os retoques finais.

– Acha que me pareço com uma gueixa, Luzia ?

Mas Luzia se ofendeu, julgando imoral aquela palavra.

– Então não sabe o que é uma gueixa, Luzia ?

A mãe, que havia construído uma vida ao lado daquele homem que começara como um “Zé ninguém”, fora trocada por uma mulher “mais jovem, mais bonita, mais alegre, mais inteligente”, foram as palavras do pai, registradas na íntegra, no surrado diário. A partir daí, por mais que Beatriz se esforçasse, não conseguia ver Helena com os mesmos olhos, “teria sido ela a responsável pela ausência da mãe em sua festa de 15 anos? Teria sido o pai? Ou teria sido a mãe que se acovardou diante do obstáculo que surgiu em seu casamento, entregando todos os pontos e sua própria vida?Teria a mãe se suicidado por excesso de amor ao pai? Ou por falta de amor próprio? Teria ela amado de verdade a filha a ponto de não pensar nela com apenas 5 anos, correndo para acordar a mãe naquela manhã chuvosa de domingo?E encontrando a mãe com os pulsos ensanguentados ?”

          Agora era a madrasta quem estava na porta do quarto, aguardando para conduzir a princesa ao baile. Beatriz sorriu para Helena, repetindo o apelido carinhoso para aquela que fora esses anos todos uma verdadeira mãe:

– Já estou descendo, Mima!

Antes de deixar o quarto, acendeu a lareira e nela deixou ardendo em brasas o diário da mãe. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” . Beatriz assistia a essas palavras se enrugando  com o fogo; era o pensamento do dia no diário da mãe… Nada é por acaso.

Beatriz desceu, conferindo os cachos de seus cabelos diante do espelho do elevador. As perguntas eram muitas e a certeza era única: Beatriz amava a vida e nada a impediria agora de bailar.

 (Marilice Ferraz)

 

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MORAL CADUCA (Fernando Bastos)

Na minha rua há um homem bom, honesto, íntegro
Vai à missa todo domingo e nunca esquece
de colocar umas notas na caixinha
Dá esmola na rua, doa roupas aos pobres, não fura a fila,
espera o pedestre atravessar a faixa,
devolve o troco a mais.
Mas o homem bom, honesto, íntegro
porque foi devidamente adestrado desde pequeno
tem estranhos entendimentos sobre a moral:
Ele odeia homossexual,
sambistas com pouca roupa no carnaval
universitária de saia curta
mulheres na praia de fio dental
e toda aquela gente que anda nua
em praias onde vai quem quer.
Por outro lado, esse homem bom, honesto, íntegro
não vê nada de mal e aplaude
rodeios, touradas, farras do boi
e farras do homem – onde gladiadores lutam
em pequenas arenas até ficarem desacordados
mesmo que isso esteja influenciando milhares de jovens
a repetir essa violência nas ruas.
Esse homem bom, honesto, íntegro
não consegue ver que ele foi enganado
por uma moral caduca, milenar, selvagem
que deprecia o belo, a sensualidade, o prazer e o nu
mas glorifica o ódio às minorias, exalta as superstições
rechaça o pensamento livre, treme de medo da dúvida
e de perguntas.

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Existe privacidade na rede social azul? (Sônia Pillon)

Sempre encarei o mundo sem fronteiras das redes sociais como uma ótima ferramenta para interagir e se interligar com as pessoas. Já reencontrei amigos de longa data, alimento laços familiares, profissionais, pessoais, e também tive a oportunidade de conhecer muita gente boa dessa forma. É claro que é preciso estar atento para filtrar e volta e meia passar um pente fino nas “amizades” adicionadas, mas essa é uma prática que deve se manter tanto no mundo virtual, como no real.
É certo que a luz de alerta deve estar permanentemente ligada, para segurança material e pessoal, identificar as páginas fake, racistas, incitadores de violência, homofóbicos, e até para evitar assédio sexual e pedofilia.
Todo o cuidado é pouco quando se lida com a rede social azul, aquela que em março deste ano já havia amealhado 1,23 bilhão de usuários no planeta, dos quais 61,2 milhões estão no Brasil… Aliás, com o anúncio da desativação do Orkut, esse mês, considerado obsoleto (“jurássico”, eu diria, tanto que deletei a minha página há quatro anos!), a força da rede social azul tende a aumentar ainda mais…
Tem muita coisa descartável e até nociva na rede social azul? Muita gente postando opiniões e imagens “sem noção”? Tem, sim! Mas também existem informações preciosas, pitadas de cultura, mensagens, vídeos e fotos emocionantes, dicas bem-vindas para otimizar a qualidade de vida e, até, piadas engraçadas que aliviam a tensão e nos fazem soltar sonoras gargalhadas… Ah, e para os solitários de plantão, infinitas possibilidades para se relacionar. Enfim, tem de tudo na rede!
E por falar em tem de tudo, isso inclui também a ostentação, o exibicionismo dos que fazem questão de mostrar o que tem e se vangloriar por isso. E veio do Reino Unido a notícia de que um jovem de 17 anos criou a página Rich Kids of Snapchat, um aplicativo de mensagens instantâneas e no Instagram, criado especialmente para que os adolescentes com idade perto dos 20 anos compartilhem fotos de viagens com jato particular, relógios caros, carros esportivos e roupas de marca…
Consta que esse adolescente, que se mantém no anonimato, teria começado a fortuna aos 12 anos, com a compra de ações e commodities… Geração exibicionista? Egocêntrica? Egoísta? Sem preocupação social? Pois é, também tem isso na rede social azul…
Mas o fato que “vazou” nesse mês e que vem causando indignação é que o poderoso dono da rede social azul, que integra a controvertida “Geração Y”, durante uma semana manipulou o feed de notícias de um grupo de usuários, em 2012, para avaliar se o conteúdo de mensagens recebidas afetaria o seu humor.
A iniciativa de “fuçar” a vida desses usuários fez parte de uma parceria com as universidades americanas de Cornell e da Califórnia, “para avaliar se o conteúdo das mensagens recebidas afetaria o humor e o teor das próprias atualizações…” O caso é investigado por parlamentar do Partido Trabalhista da Grã-Bretanha e abriu uma discussão sobre privacidade, ética, poder e consentimento sobre plataformas digitais.
E agora? Você acredita que adianta restringir o acesso às informações pessoais na rede? Afinal, existe, ou não, privacidade na rede social azul?

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